A Igreja no Brasil, todos os anos, dedica o mês de setembro à Bíblia. A celebração da memória de São Jerônimo (séc. IV-V), no dia 30, é a referência para este tempo de maior atenção às Sagradas Escrituras. Teólogo importante, Jerônimo dedicou sua vida ao estudo dos textos judaico-cristãos, tendo traduzido a Bíblia para o latim, a chamada vulgata, que foi amplamente adotada pela Igreja Católica Apostólica Romana e teve impacto duradouro na teologia e na liturgia cristãs.
Aliada à Sagrada Tradição, o cristianismo católico tem na Bíblia – Antigo e Novo Testamentos (AT e NT) – a “carta magna” onde busca respostas para as questões morais, dentre elas a homossexualidade. Alguns questionamentos emergem diante desta constatação. A Bíblia tem respostas para perguntas de todos os tempos e contextos? Mais especificamente falando, a Bíblia teria realmente algum ensinamento sobre a homossexualidade ou sobre a diversidade sexual e de gênero, tal como estes temas são abordados na atualidade?
Para quem toma os textos bíblicos ao pé da letra, certamente a resposta é SIM. Nesse sentido, alguns destes escritos, tomados de modo literal, se tornam o que se costuma dizer “textos do terror” para pessoas LGBTQIA+: Gênesis 19, 1-29; Levítico 18,13 e 20,13; e, no NT, a Carta aos Romanos 1,24-27, a 1ª Carta aos Coríntios 6, 9-10, bem como 1ª Carta a Timóteo 1,10). Entretanto, a Bíblia, considerada sagrada para bilhões de pessoas, não é tão simples e fácil de ser lida e interpretada quanto parece. Além disso, dependendo da forma como a interpretamos, ela se transforma numa faca de dois gumes: pode repartir o pão com o necessitado, como também pode ser instrumento para matar um semelhante!
Antes de tudo, a Bíblia é um conjunto de escritos compostos por vários autores, em tempos e contextos totalmente diferentes dos nossos e submetidos a condições de conhecimento frequentemente bastante precárias. Um exemplo disso seria a falta de conhecimento médico (em relação ao que temos hoje) que fez com que muitas doenças fossem consideradas manifestações do demônio, como a epilepsia.
Em suma, a bíblia não deve ser lida ao pé da letra, já que pode nos levar a fazer mal a nós e aos outros. Isso é particularmente verdadeiro quanto à sexualidade. A moral sexual católica, que moldou a compreensão e a prática da sexualidade no Ocidente, frequentemente assumiu, no decorrer da história, os textos bíblicos acima de forma literal. Além disso, os primeiros teólogos cristãos, especialmente nos séculos I-VI, deixaram-se influenciar profundamente por correntes filosóficas (nomeadamente, a estoica) que viam o prazer com desconfiança e, por vezes, desprezavam o prazer. Assim, enclausuraram toda expressão afetivo-erótico-sexual no matrimônio monogâmico, cis-heterossexual com fins procriativos e unitivos.
Criou-se, então, uma cultura que considera natural apenas a relação afetivo-erótico-sexual entre homem e mulher, baseando-se nas diferenças biológicas entre os sexos. Do ponto de vista eclesial, tudo o que ultrapassa esta fronteira é visto como antinatural, anormal, desordenado e, portanto, pecado. Seriam situações “caóticas” do humano, levando a Igreja institucional a chamá-las, indistinta e pejorativamente, de “ideologia de gênero”.
Tal reducionismo da sexualidade trouxe e alimentou incompreensão e preconceitos em relação às pessoas LGBTQIAP+, gerando hostilidade, agressividade e ódio, legitimados pela religião. Ao longo da história, muitos sujeitos LGBTQIAP+ foram multados, encarcerados, torturados, enforcados ou queimados vivos, sempre “em nome de Deus”.
As coisas começaram a mudar a partir da metade do século passado, mas há ainda muito preconceito a ser superado. Prova disso é que o Brasil está no topo dos países que mais matam pessoas LGBTQIAP+ no mundo. Flagrante contradição de um povo majoritariamente cristão. Assim, indivíduos que se intitulam seguidores de Jesus, cujo principal ensinamento é o amor a Deus e ao próximo (Mt, 22, 37-30; João 13, 35), direta ou indiretamente, sujam suas mãos com o sangue de filhos e filhas de Deus LGBTQIAP+ quando aderem a esta onda homotransfóbica. Como padre, já acolhi muitos batizados e batizadas esmagados por tal preconceito, muitas deles a ponto de desistirem da vida. Isso tudo é muito triste.
Felizmente, com o protagonismo de tantos batizados e batizadas LGBTQIAP+ nos últimos tempos. Graças ainda ao apoio de comunidades, religiosos e religiosas e, mais recentemente, de bispos e cardeais. Graças ao impulso dado pelo Papa Francisco – “se uma pessoa é LGBT, quem sou eu para julgá-la?” – vamos coletivamente aprendendo o valor da diversidade e passamos a generosamente acolher as pessoas LGBTQIA+. A Divina Ruah, ora silenciosa e discreta, ora impetuosa e ousada, sopra onde quer e vai transformando a Igreja (João 3,8). Nossa Rede Nacional de Grupos Católicos LGBTI+ é um precioso exemplo disso, ao questionar e refletir, ao dialogar e pesquisar novas chaves de leitura da Bíblia e da Teologia. Vai ficando nítido que nos corpos LGBTQIA+ também habita a Santíssima Trindade!
Voltando à imagem da faca de dois gumes aplicada à Bíblia, coloca-se a questão: o que fazer? É preciso ler, meditar e estudar o texto bíblico não de forma isolada e individualista. Jesus deixou claro que devemos segui-lo de forma comunitária, por isso, mesmo questionando posições oficiais, temos que caminhar com a comunidade eclesial. É ler a Bíblia tendo consciência de que todo texto tem um contexto, isto é, os condicionamentos sociopolítico-econômico-culturais, tanto de quem o escreveu quanto de quem o lê e interpreta. Lido fora de seu contexto, um texto se torna pretexto que pode levar a fazer o mal em nome de Deus.
Quase no fim desta reflexão, apresento uma anedota que ilustra o perigo da leitura da Bíblia ao pé da letra. Numa carta, em tom ao mesmo tempo inteligente e irônico, um estudante de Teologia em Boston se dirige a uma famosa radialista nos Estados Unidos, que costuma responder a seus ouvintes, frequentemente condenando as pessoas homoafetivas. Ela teria afirmado, num de seus programas ao vivo, que a homossexualidade é uma perversão: “É o que diz a Bíblia em Lv 18,22: Não te deitarás com um homem como te deitarias com uma mulher: é abominação. A Bíblia refere-se assim à questão. Ponto final”. Este recado do estudante de teologia ficou conhecido como “Carta a uma fundamentalista”:
“Agradeço por colocar, na educação das pessoas, tanto fervor pela Lei de Deus. Aprendo muito ouvindo o seu programa e procuro que outras pessoas o escutem também. No entanto, eu preciso de alguns conselhos quanto a outras leis bíblicas. Por exemplo: Eu gostaria de vender a minha filha como serva, tal como nos é indicado em Ex 21, 7. Em sua opinião, qual seria o melhor preço para minha filha? Em Lev 25,44, também ensina que me é permitido possuir pessoas escravas, homens ou mulheres, na condição que sejam compradas em nações vizinhas. Um amigo meu afirma que isto é aplicável aos mexicanos, mas não aos canadenses. Poderia a senhora esclarecer-me este ponto? Por que é que eu não posso escravizar os canadenses? Tenho um vizinho que trabalha aos sábados. Ex 35, 2, diz claramente que ele deve ser condenado à morte. Sou obrigado a matá-lo eu mesmo? Poderia a senhora sossegar-me de alguma forma neste tipo de situação constrangedora? Outra coisa: Lv 21, 18 diz que não podemos aproximar-nos do altar de Deus se tivermos problemas de visão. Eu preciso de óculos para ler. A minha acuidade visual teria de ser de 100%? Seria possível rever esta exigência no sentido de baixarem o limite? O meu tio não respeita o que diz Lv 19, 19, misturando dois tipos de cultura na mesma roça: milho e soja. Da mesma forma, a sua esposa usa roupas de diferentes tecidos; algodão e poliéster. Além disso, ele passa os seus dias a maldizer e a blasfemar. Será necessário ir até o fim do processo embaraçoso que é reunir quem habita na aldeia para apedrejar o meu tio e a minha tia, como prescrito em Lv 24, 10-16? Não se poderia antes queimá-los vivos, após uma simples reunião familiar privada, como se faz com aqueles que dormem com parentes próximos, tal como aparece indicado em Lv 20,14? Confio plenamente na sua ajuda.”
Concluo insistindo na necessidade de aprofundarmos nossos conhecimentos bíblicos, teológicos e pastorais, pois só assim avançará o debate na Igreja e na sociedade, abrindo caminho para a construção do Reino de Justiça, Paz e Amor que Jesus Cristo veio anunciar e instaurar entre nós!
Pe. Leomar Nascimento de Jesus
Mestre em Teologia e Doutor em Ciência da Religião
P.S. abaixo algumas sugestões de leitura:
BOHN GASS, Ildo. Novas Masculinidades e Bíblia. São Leopoldo-RS: Centro de Estudos Bíblicos, 2018.
SALZMAN, T.A.; LAWLER, M.G. A pessoal sexual: por uma antropologia católica renovadas. Porto Alegre: UNISINOS, 2012.
LIMA, Luís Corrêa. Teologia e os LGBT+. Petrópolis: Vozes, 2021.
BESSON, Claude. Homossexuais Católicos: como sair do impasse? São Paulo: Loyola, 2015.
HELMINIAK, Daniel A. O que a Bíblia realmente diz sobre a homossexualidade. São Paulo: Summus, 1998.
JUNQUEIRA, Roberto Diniz. A invenção da “ideologia de gênero”: um projeto reacionário de poder. Brasília: Letras Livres, 2022.
JESUS, Leomar Nascimento. As outras cores do catolicismo: estudos sobre os grupos católicos LGBTI+.
JESUS, Leomar Nascimento de. As outras cores do catolicismo: estudo sobre os Grupos Católicos LGBTI+. 2024. Tese (Doutorado em Ciência da Religião) – Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2024. Disponível em: https://repositorio.pucsp.br/jspui/bitstream/handle/41153/1/Leomar%20Nascimento%20de%20Jesus.pdf. Acesso em: fev. 2024