Em junho celebramos o mês do Orgulho LGBT+. Um tempo especial e privilegiado para a luta da resistência, mas também um tempo oportuno de reflexão para cada um de nós e principalmente para o movimento. De fato, é um tempo de graça para os Grupos Católicos da Diversidade, de modo que esse ano à Igreja que é mãe e mestra, começa a se abrir de forma atenciosa as suas portas para a acolhida de todas as pessoas de “condição homoafetivas”, não podemos conceber esse termo como pejorativo, mas como um termo geral da qual muitos tem conhecimento e domínio sobre.
Mediante esse quadro de acolhida, que desejo aportar uma singular reflexão entre a passagem do Eunuco em Atos, 8, 26-39 com a Comunidade LGBT+. De forma alguma, podemos aceitar leituras fundamentalistas e abusos sobre os textos bíblicos, uma vez que de forma indubitável, os textos Bíblicos, possuem como fundamento: a transmissão da Palavra de Deus, que tem como propósito, nos aporta o diálogo de um Deus como seu Povo.
Por conseguinte, é importante destacar os aspectos históricos desse texto bíblico, sendo eles: um homem, negro, eunuco, mordomo-mor de Candace – rainha dos etíopes, superintendente de todos os seus tesouros e por fim um detalhe particular que ele era religioso (Atos 8, 26). A partir dessas concepções que começamos a nossa reflexão.
Analogamente, na Bíblia, Eunuco é normalmente um homem que foi castrado. É preciso, recordar que nos tempos da Bíblia, em alguns países, certos homens eram castrados. Normalmente esses homens eram escravos que trabalhavam para o rei. Portanto, um Eunuco podia mais facilmente ganhar a confiança do rei, porque o rei sabia que ele não iria seduzir sua rainha. Por isso, muitos Eunucos estavam ao serviço da rainha e do harém.
De outro lado, Deus proibiu a castração ao seu povo (Deuteronômio 23, 1). Um Eunuco não poderia entrar na assembleia de Deus. Mas Deus prometeu que um dia os Eunucos fiéis a Deus iriam ser aceitos (Isaías 56, 4-5). Isso aconteceu com a ressurreição de Jesus. O Eunuco etíope que aceitou Jesus, quando ouviu o Evangelho anunciado por Felipe, representa o cumprimento dessa promessa (Atos dos Apóstolos 8, 36-38).
Jesus falou sobre Eunucos em Mateus 19, 12. Ele disse que havia três tipos de eunuco:
I- De nascimento – homens que nascem sem capacidade ou sem vontade de ter relações sexuais;
II- Feitos pelos homens – homens castrados;
III- Voluntários – homens que decidiram não ter relações sexuais, optando pelo celibato para se dedicarem totalmente ao evangelho.
Retomando agora a narrativa de Atos 8, 26-39, nos deparamos que a curiosidade do Eunuco transformou inteiramente a sua vida, o caminho que ele percorreu de um lugar a outro, o transformou de forma radical. Passou de um possível Judeu para um infactível Cristão. Deixou de ser um mero seguidor da religião para torna-se filho de Deus. Passou do estado vazio para ser repleto do Espírito Santo, gerando nele o fruto da alegria, o deixando jubiloso.
De fato, a Comunidade LGBT+ é como esse Eunuco que está à procura do verdadeiro encontro com Deus. Diferente do Eunuco que realizou a transição de religião, a Comunidade LGBT+ busca na Igreja que é fonte de sua religião a mesma acolhida que Felipe teve para com o Eunuco. Somos fiéis que é o próprio Espírito Santo que está conduzindo esse novo tempo de encontro.
Deixou aqui uma provocação: Quantos séculos de castração física, espiritual, psicológica a Comunidade LGBT+ já passou e terá que passar para ter voz e vez? A Igreja sempre foi, é e continuara sendo mãe e mestra, mas que no seu interior possui filhos que castra seus irmãos, são homens e ao mesmo tempo pastores que são monstruosos em suas formas de pensar e de agir.
A principio, o amor sem atos é como um eco… que apenas se repete, repete e repete e não gera, mas nada além daquilo. Do mesmo modo é a fé, ela sem obras é morta (Tiago 2,26). Uma vez que maltratamos, excluímos, somos indiferentes e preconceituosos para com uma pessoa homossexual – estamos a castrando, pois, aprisionamos seu espírito e deixamos seu corpo – e um corpo sem espírito está morto.
Desse modo, acrescento aqui o termo interseccionalidade, uma vez que nos permite compreender melhor as desigualdades e a sobreposição de opressões e discriminações existentes em nossa sociedade. Principalmente, mediante de um racismo tão escrachado e ao mesmo tempo camuflado que se apresenta na escrita e na fala de tantas figuras políticas e religiosas que estão presentes em nosso cotidiano. Constatando-se uma falsa hipocrisia de acolhimento ao Grupo LGBT+. Muitas vezes nem nos damos conta, mas essas formas de tratamento reforçam estereótipos e reproduzem a intolerância.
Similarmente, podemos conceber na figura ou personagem do Eunuco, a representação de uma pessoa “Queer”. Vale enfatizar que cada pessoa é única e lida com sua subjetividade de forma singular. Permitam-me acrescentar nesse aspecto duas falas do Papa Francisco: “Se uma pessoa com tendências homossexuais é crente e procura Deus, quem sou eu para julgar? A criminalização da homossexualidade é um problema e não pode ser ignorado (…) Aqueles com tendências homossexuais são filhos de Deus – Deus é Pai e não renega nenhum de seus filhos. E o “estilo” de Deus é “proximidade, misericórdia e ternura”. Ao longo deste caminho vocês encontrarão Deus”. E para que ocorra esse encontro, precisamos ser como foi Felipe – ter atitude de ir ao encontro e ao mesmo tempo ter atitude do Eunuco – de deixar-se ser encontrado. Esse é um caminho que possui de dois pesos com duas mesmas medidas.
Mediante o exposto, o sentimento de desejo é que toda a Comunidade LGBT+ encontre nas realidades eclesiais uma família, que façam parte dessa família, que se sintam em família. Sou convicto que nada no mundo seja maior do que a força da fé e do amor! Essas duas forças precisam ser transmitidas e vividas de forma intensiva.
*Interseccionalidade: é a interação ou sobreposição de fatores sociais que definem a identidade de uma pessoa e a forma como isso irá impactar sua relação com a sociedade e seu acesso a direitos.
JN, CSSp
Núcleo Santa Clara
Rede Nacional de Grupos Católicos LGBT+