João, o discípulo amado de Jesus. Amado porque, como criatura de Deus, como nós, para ele não havia outra saída; e amado porque ele, João, acreditava nesse amor com toda a força de sua alma. João sabia ser amado e isso fazia dele uma pessoa especial, uma pessoa singular. Deus me ama, e eu acredito nesse amor. Essa dinâmica faz toda a diferença para aqueles que são diferentes e para aqueles tratados com indiferença…
No Evangelho que lemos, Jesus é comparado a uma porta. Não num sentido pejorativo, mas naquele sentido de que sempre haverá outra possibilidade para aqueles que muitas vezes não estão vendo saída ou solução para as suas vidas.
O rebanho está resguardado dentro de um redil, rodeado por uma cerca/muro. Jesus concentra sua atenção na porta, que permite tanto a entrada do pastor quanto a saída das ovelhas. Aquele que não entra pela porta vem com o intuito de roubar e causar danos. A voz do pastor é conhecida e ele tem autoridade de encaminhar suas ovelhas pelo caminho do bem, com verdes pastagens, com alimentos que permitem viver.
Quando o pastor sente a falta de uma de suas ovelhas, ele vai atrás – pois todas são importantes aos seus olhos. Deus nos enxerga como somos, e quando nos afastamos do nosso grupo, quando pulamos a cerca que rodeia o redil, podemos nos afastar desse Amor vivido por João e, consequentemente, nos afastar do nosso lugar de pertença; e, consequentemente, viver uma ilusão de liberdade.
Nós somos as ovelhas que seguem o pastor para um dia nos reunirmos diante da grande pastagem. Não que o caminho de quem passa pela porta seja isento de pedras, de desafios, mas é um caminho que, apesar de, nos permitirá permitir. Esse caminho nos conduzirá a liberdade. Eu vim para que todos tenham Vida, vida em abundância.
Pensemos um pouco nestas duas palavras: liberdade e vida… Liberdade e vida. Curiosamente, falamos de liberdade e de vida no dia em que celebramos o dia da consciência negra – muitas vezes sob os protestos de grupos que se dizem cristãos, que vão à missa, confessam, comungam, adoram, fazem vigílias, mas são incapazes de perceber naquele outro, naquele diferente, uma extensão de si mesmos; são incapazes de perceber que o diferente pode nos ensinar tanto quanto um igual – muitas vezes, se pensarmos direitinho, até mais. Falam da bondade de Deus, mas que bondade é essa, restrita a uns? Que Deus é esse que permite fragmentar o ser humano, aquele ser que deveria ser tratado como um igual? No que diz respeito a negritude, sempre no dia 20 de novembro ouvimos dizer que o que existe é a raça humana. Falam mal de Zumbi dos Palmares, o acusam de ter escravos, mas esquecem que Zumbi foi um homem de seu tempo e que a escravidão praticada por Zumbi, se era como em África, era muito diferente do que temos hoje.
Esses mesmos que falam de Zumbi bradam “Hosana ao Filho de Davi…”. Mas quem foi mesmo Davi? Aquele que tramou a morte de seu soldado para ficar com a sua esposa? Não existe raça, mas podemos perceber a distinção todas as vezes que olhamos as comunidades e periferias, todas as vezes que entramos em um colégio para a classe média alta ou em um restaurante fino do Leblon. Irmã Helô, mas lá tem negros sim… Mas estão servindo. Não poderia ter uma maior mistura? Falam da bondade de Deus, mas que Deus é esse que não permite que eu me sensibilize com a dor de uma mãe órfã de sua filha, só porque ela é trans, é “sapatão”? Ou do seu filho, só porque ele é gay, só porque ele é negro? Chega de sobreviver. O tempo urge que nós vivamos. Vivamos, independentemente de nossa raça, de nossa orientação sexual, de nossa situação econômica e social. Vivamos e tenhamos as mesmas oportunidades, independente de nossa sexualidade ou gênero ou cor de pele.
Essa forma abstrata e superficial de amar a Deus nos revela um cristianismo estéril, incapaz de dar à luz, que esteriliza aquele que o segue, que mata ou deixa morrer agonizando… É um cristianismo de um deus que não se fez homem, nascido em Nazaré, um lugar de onde, pelo olhar julgador de muitos, não poderia sair nada de bom, no seio de uma menina de dezesseis anos, que estava prometida a um homem e ficou grávida de Ruah, antes do casamento. Eu fico aqui imaginando a Ruah envolvendo Maria, e ela plena, repleta em seus braços, prazerosamente dançando a melodia daquele momento, daquele novo tempo que acabava de começar…
O Evangelho nos dá tantas pistas de amor, mas a humanidade prefere odiar. Deus nos criou em liberdade e para sermos livres – e nós, seres humanos, preferimos nos enjaular, enjaular os outros, enjaular nossos sentimentos…
Eu sou a luz do mundo, o pão da vida, o bom pastor, a porta, o caminho, o Filho de Davi… que nós consigamos introjetar o Amor ágape em nossas vidas e nos desnudemos daquilo, ou daquele, daquela ideia pré-concebida que mais nos afasta desse Deus bom e providente, do que nos aproxima. Que, como Maria, nós possamos nos plenificar com o momento e gozar uma vida totalmente, abandonadas, abandonados, abandonades nos braços daquele que nos criou, nos amou primeiro e nos ama abundantemente.
Que Ruah abra os nossos corações para tudo de bom que estará acontecendo nesse encontro. E que, ávides por uma vida melhor, nos sintamos grávides da Ruah, do Espírito, para que possamos parir amor a cada segundo de nossas vidas.
Texto: Irmã Heloísa Bento – Homilia preparada para a celebração de abertura do III Encontro Nacional de Católicos LGBTQIAP+, em 20 de novembro de 2021 – Dia Nacional da Consciência Negra.
Acesse o texto em arquivo PDF neste link.